Atenção!
Contêm spoilers de Mãe!
Há filmes que mudam uma era. Há filmes que dividem
o público de tal forma que geram debates maiores do que seus realizadores
poderiam imaginar. Há filmes que são verdadeiros retratos do tempo e do espaço
que representam e, talvez por isso, não recebem de imediato o reconhecimento
merecido (vide Cidadão Kane, de 1941, por exemplo). Mãe!, de 2017, é tudo isso
e um pouco mais. O filme de Darren Aronofsky não só dividiu a audiência e a
crítica como também rendeu muita pauta para diversos veículos. Muitos foram os
canais em sites de vídeo, podcasts, portais e blogs que analisaram, destrincharam,
disseminaram teorias e leituras possíveis, defenderam e/ou criticaram o filme.
Mas, o fato é que, além de qualquer interpretação (inclusive a mais popular,
que relaciona a narrativa a passagens bíblicas), o longa traduz como poucos o
papel da mulher ao longo da história da humanidade, até chegar aos dias atuais.
No filme, nenhum dos personagens tem nome próprio.
A protagonista, por exemplo, é conhecida apenas como “mãe”, daí o título. O substantivo
é perfeito para servir de referência à personagem de Jennifer Lawrence, pois ao
longo de todo filme vemos o desenvolvimento de uma mulher que primeiro se
prepara para gestar, depois passa pela dor do parto e, por último, sente uma
dor que provavelmente é a pior de todas: a perda de um filho. A “mãe” que tem
sua história contada no longa, entretanto, não representa apenas uma mulher que
tem um filho e depois o perde. Ela representa também o mundo (ou a própria casa
onde mora, ou a mãe-natureza, ou o paganismo, ou a humanidade, ou qualquer
outro conceito mais mundano/carnal e menos divino/espiritual), mas na forma de
uma mulher – e isso é extremamente importante.
Sem cair na famigerada leitura bíblica da obra
(uma das mais rasas), o desenvolvimento da “mãe” no enredo do filme pode ser dividido
em três momentos. O primeiro, no começo, em que ela vive em paz com seu marido, um famoso e orgulhoso
escritor (referido apenas como “ele” e interpretado por Javier Bardem) numa
casa no meio de um aparente “nada”. Nesse ponto, é perceptível a dependência
dela por ele, representada numa das primeiras cenas, quando ela acorda, não o
encontra na cama e começa a procurá-lo. Apesar da banalidade do momento
(qualquer um que está acostumado a acordar e encontrar seu/sua companheiro ou
companheira ao seu lado, na cama, também iria atrás), começar o filme desse
jeito é bem representativo, especialmente para o que vem depois. Nessa primeira
parte, a “mãe” é mais submissa e não questiona o que seu marido faz.
Já na segunda parte do filme, quando tudo começa
a desandar após a chegada do personagem de Ed Harris, “mãe” parece despertar da
hipnose a que estava acometida até então. Ela começa a perceber sua posição na
casa e na vida de seu marido, e esse despertar de consciência, pouco a pouco, a
faz ver que “ele” a mantém apenas como alguém para quem voltar depois de ter
feito qualquer outra coisa que não se dedicar a ela. Simultaneamente, percebe
também que sua voz não é nada quando se trata das decisões tomadas em sua casa,
inclusive sobre quem entra e quem sai do lugar – embora trabalhe sozinha e incansavelmente
para reformá-la após um grande incêndio. O descontrole citado se dá, muito em
parte, porque ela não consegue se fazer ouvida. A angústia que toma conta da personagem
nesse momento pode ser sentida por qualquer um que, a essa altura do filme, já
entendeu todas as entrelinhas que o roteiro tenta passar.
Na última das três partes, “mãe”, depois de ter
gerado, parido e perdido seu bebê, vê o caos tomar conta de sua casa e – como
há uma clara relação entre ela e o ambiente em que vive – dela também. O lugar
está totalmente fora de controle, cheio de pessoas desconhecidas e é palco de
cenários de guerra (no sentido literal da palavra). Ao ver seu mundo/casa/vida
desmoronar sem nem ao menos ter podido criar seu filho, a raiva toma conta da
protagonista que, desesperada, ateia fogo em si mesma e na casa.
O fim da “mãe” e da casa representam também o
fim do mundo, da humanidade e da vida como a conhecemos. A escolha de representar
esses conceitos na forma de uma mulher é mais do que justa. Da mesma forma que,
em Mãe!, a mulher é quem dá início a existência, a ganância humana, e
especialmente de figuras masculinas, é o que a leva ao colapso.
Os claros paralelos da história das mulheres no
decorrer da história da humanidade que o filme faz são didáticos o suficiente
para compreender toda a chamada “primavera” que vivemos atualmente. Primeiro, a
mulher era vista como inferior e, por isso, devia se submeter a alguma figura
masculina. Depois, quebrou os paradigmas dentro de si mesma, começou a lutar e conseguiu
alcançar as primeiras conquistas. Agora, depois de muito tempo (muito mesmo), consegue
colocar suas pautas em discussão para poder alcançar todas as outras conquistas
restantes e, finalmente, em algum momento, atingir a igualdade. Ainda falta
muito, mas é certo que essa “primavera” não terminará até que tudo esteja nas
ordens.
A “mãe” do filme de Aronofsky é, provavelmente,
a personagem feminina mais injustiçada dessa lista, e não apenas por motivos
relacionados à sua própria personalidade, como também – e principalmente – por conta
da má interpretação feita por muitos sobre a obra. Há quem assista e fique com
raiva da personagem e do filme porque a mulher representada não tem voz. Há
quem a xingue. Há quem diga que ela não tem a coragem necessária para enfrentar
o ego gigantesco de seu marido.
Por outro lado, há quem simplesmente não goste do
filme e, por isso, não se dê ao trabalho de separar a personagem representada
da obra em que ela está inserida e prefira dizer que a atuação de Jennifer é a
pior da atriz até então. Mas, de um jeito ou de outro, ambos os grupos que fazem
essas leituras da obra (ou outras parecidas, preguiçosas e tendenciosas,
geralmente vindas de grupos mais conservadores e machistas), o que isso
demonstra é que o feminismo é sim muito necessário, justamente para que
tragédias como a representada no filme não continuem a acontecer. Porque essa "mãe" representa todas as mulheres do mundo, sejam elas/vocês mães ou não.
*Texto por Bruno Carvalho
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